quarta-feira, junho 21, 2006

"O mais histericamente histérico de mim" F.P.

Onde está a linha que separa a sanidade da insanidade mental?
Onde quer que esteja, é certamente ténue e gosta de submergir num nevoeiro qualquer para que nos interroguemos acerca de quem está do lado de lá mas, principalmente, quem está do lado de cá.
Existem especulações sobre o facto dos heterónimos de Fernando Pessoa surgirem de esquizofrenia. A esquizofrenia tem, desde sempre, sido considerada por excelência, a doença sinónimo de loucura incurável. É uma situação que leva o doente a confundir a fantasia com a realidade e coloca em crise as suas relações consigo próprio e com o mundo.


"…Desde criança tive a tendência para criar em meu torno um mundo fictício, de me cercar de amigos e conhecidos que nunca existiram. (Não sei, bem entendido, se realmente não existiram, ou se sou eu que não existo. Nestas coisas, como em todas, não devemos ser dogmáticos.) Desde que me conheço como sendo aquilo a que chamo eu, me lembro de precisar mentalmente, em figura, movimentos, carácter e história, várias figuras irreais que eram para mim tão visíveis e minhas como as coisas daquilo a que chamamos, porventura abusivamente, a vida-real. Esta tendência, que me vem desde que me lembro de ser um eu, tem me acompanhado sempre, mudando um pouco o tipo de música com que me encanta, mas não alterando nunca a sua maneira de encantar." F.P.

"Num dia em que finalmente desistira - foi em 8 de Março de 1914 - acerquei-me de uma cómoda alta, e, tomando um papel, comecei a escrever, de pé, como escrevo sempre que posso. E escrevi trinta e tantos poemas a fio, numa espécie de êxtase cuja natureza não conseguirei definir. Foi o dia triunfal da minha vida, e nunca poderei ter outro assim. Abri com um título, O Guardador de Rebanhos. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. (...) E tanto assim que, escritos que foram esses trinta e tantos poemas, imediatamente peguei noutro papel e escrevi, a fio também, os seis poemas que constituem a Chuva Oblíqua, de Fernando Pessoa. Aparecido Alberto Caeiro, tratei logo de lhe descobrir - instintiva e subconscientemente - uns discípulos. Arranquei do seu falso paganismo o Ricardo Reis latente, descobri-lhe o nome, e ajustei-o a si mesmo, porque nesta altura já o via. E, de repente, e em derivação oposta à de Ricardo Reis, surgiu-me impetuosamente um novo indivíduo. Num acto, e à máquina de escrever, sem interrupção, nem emenda, surgiu a Ode Triunfal de Álvaro Campos - a Ode com esse nome e o homem com o nome que tem." F.P.


Fernando Pessoa em carta a Adolfo Casais Monteiro:
“Começo pela parte psiquiátrica. A origem dos meus heterónimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurasténico. Tendo para esta Segunda hipótese, porque há em mim fenómenos de abulia que a histeria, propriamente dita, não enquadra no registo dos seus sintomas. Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. Estes fenómenos - felizmente para mim e para outros - mentalizaram-se em mim; quero dizer, não se manifestam na minha vida prática, exterior e de contacto com outros; fazem explosão para dentro e vivo-os eu a sós comigo. Se eu fosse mulher - na mulher os fenómenos histéricos rompem em ataques e coisas parecidas - cada poema de Álvaro de Campos (o mais histericamente histérico de mim) seria um alarme para a vizinhança. Mas sou homem - e nos homens a histeria assume principalmente aspectos mentais: assim tudo acaba em silêncio e poesia.”


A personalidade múltipla está classificada entre os transtornos dissociativos porque existem várias personalidades dentro de uma só pessoa e essas personalidades não são necessariamente patológicas.
No transtorno de personalidade não há amnésias, mas uma conduta rotineiramente inadaptada socialmente. O aspecto essencial da personalidade múltipla é a existência de duas ou mais personalidades distintas dentro de um indivíduo, com apenas uma delas a evidenciar-se a cada momento. Cada personalidade é completa, com suas próprias memórias, comportamento e gostos de forma bastante elaborada e complexa. As personalidades são bastante independentes umas das outras sendo possível inclusive terem comportamentos opostos, por exemplo, uma sendo sexualmente promíscua e outra recatada. Em alguns casos há um completo bloqueio de memória entre as personalidades, noutros casos há conhecimento podendo gerar rivalidades ou fraternidades. O observador externo que só conheça uma das personalidades não notará nada de anormal com esta pessoa. As personalidades podem ser do sexo oposto, ter idades diferentes e até de outras raças.
O aspecto central da despersonalização é a sensação de estar desligado do mundo como se, na verdade, estivesse a sonhar. O indivíduo que experimenta a despersonalização tem a impressão de estar num mundo fictício, irreal mas a convicção da realidade não se altera.

Fernando Pessoa era absolutamente genial. Se louco, admiro-o mais que muitos sãos.
Talvez vá escrever uma inconveniência, but I'm gonna say it anyway... A personalidade múltipla deve ser das coisas mais extraordinárias que existem! Uma só mente que se transforma, molda, acredita, vive e sofre como se outras fosse. Um cérebro humano que consegue conceber múltiplas personalidades e delas criar arte distinta.
Vasta e profunda, a obra de Fernando Pessoa é contraditória, desconcertante e paradoxal.

Jack Nicholson no filme “Voando Sobre Um Ninho de Cucos” interpreta o papel de alguém que se passa por louco e faz de loucos o mais sãos possível. O seu espírito livre faz com que o poder o prenda para todo o sempre… ou pelo menos até que um louco aja com a coerência de uma mente sã e decida soltá-lo.

Felizmente, recordei Fernando Pessoa na mesma tarde do dia em que vi o filme. Um dia harmoniosamente maníaco. Espero, sinceramente, andar pela realidade e voar um pouco por uma loucura que me faça mais sadia.

3 comentários:

Anónimo disse...

Não acho que o que escreveste sobre a personalidade múltipla (ainda que MUITO discutível) seja necessariamente uma "inconveniência".. Eu própria tenho alguma dificuldade em perceber COMO é que uma pessoa consegue processar essa miscelânea de personalidades e vivê-las individualmente, de uma forma tão complexa... E sim, é um método de dissociação, muitas vezes para reprimir um qualquer acontecimento traumático, mais frequentemente na infância (as crianças têm uma maior capacidade de se alienarem aos seus surroundings).. Mas.. Isto tudo para dizer que gosto do facto de levantares questões importantes e claro, me likes Fernando Pessoa.. E quem não tem momentos em que não se sente totalmente um? Momentos em que somos invadidos por vários pensamentos que nada têm a ver com a tua própria personalidade, mas que existem nevertheless? E, nesses casos, há sempre a oportunidade (saudável) de "voar".

Kudos.

AR disse...

Gostei essencialmente da coragem, e da perspectiva de"adorar" ou gostar de algo louco..esquizofrénico e dual...ou mais ainda.Gostei do "trabalho" do post.

She disse...

x: Tens razão. Eu não sei o que é viver com isso e, como tal, talvez seja um abuso tecer comentários acerca disso. No entanto, não quis de forma alguma insinuar que era uma experiência feliz. Apenas que é incrível como o corpo humano pode experienciar tal fenómeno. Agradeço o teu comentário e peço desculpa se, de alguma forma, transpareci uma ideia de insensibilidade acerca do assunto.