A meio da tarde, ainda de pijama (diz que só consegue estudar se estiver confortável), vai, por não conseguir estudar, rondar a cozinha - como desculpa a necessidade de ter que alimentar o corpo para o cérebro funcionar.
O resto da casa andava em afazeres mais desejados para um fim-de-semana solarengo como este inesperado a meio de Outubro. Havia um bater constante de portas, uma roda viva entre o jardim e o interior.
Quando ela percebeu que a única coisa que lhe apetecia era um pedaço de chocolate e uma caneca de chá (não que lhe apetecesse mesmo, mas a vontade para não estudar infectava a sua vontade para fazer qualquer outra coisa. Insistia sempre que o tempo era para estudar e que se não o fizesse, nada mais faria!, como se isso fosse punir alguém se não ela própria), dirigiu-se para as escadas, de volta para a masmorra... Mas, tal como nos filmes, exactamente no momento em que passava diante da porta de casa, bateram.
Abriu a porta do carro com uma cara de quem trazia uma bomba. Mas uma bomba daquelas que todos os núcleos de amigas íntimas sabem que dão azo a umas horas de conversa e extrapolações, piadas e revelações. Batendo a porta, o silêncio era consensual entre todas e, não denunciando um único traço de expressão facial que desmistificasse o que por aí vinha, disse:
- Chega de amores. Vou ter um caso com o jardineiro!
Riram-se. Já era comum entre elas este tipo de resoluções descabidas.
- Pensei que andavas em modo-estudo… O que é que se passou para te aflorarem tais ideias?
- Abri-lhe a porta apresentando a minha pessoa mais descuidada, e ele sorriu. Acho que uma mulher não precisa de mais.
- Mas um… jardineiro?!?
A reacção de incredulidade não era tanto sincera como mais um dos seus hábitos de dar uma falsa crença e importância aos acontecimentos, para que se pudesse extrair de uma simples banalidade todo o ridículo de tratá-la como se merecesse verdadeira consideração.
- Bom… não era o que tinha inicialmente planeado. Mas os planos foram feitos para serem alterados e há que ajustar as expectativas! E, afinal, se um médico trata de seres vivos… o jardineiro trata de plantas… que são seres vivos… logo... é quase como um médico!
- Bem que dizem que às vezes as coisas estão mesmo à nossa frente e só nós é que não as vemos!
Não posso precisar o que se seguiu... (até porque não estava lá) mas, quase que posso jurar que se deu um silêncio, uma troca de olhares... e certamente se desfizeram, em simultâneo, nas gargalhadas de sempre.
Porque assim é quando as pessoas se conhecem quase tão bem como a si próprias.
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