Era uma tarde de Verão. Uma tarde como tantas outras... Só que o Verão acabava de chegar este ano e algo tinha mudado - pelo menos, para ele - desde o Verão passado. Mesmo assim, para muitos, era uma tarde de Verão como tantas outras - pelo menos, para ela.
A porta da entrada do prédio estava entreaberta. No Inverno ainda havia o cuidado de baterem com força para a fechar; no Verão os estragos ajudavam a que corresse uma corrente de ar, ainda que quente (mas quem é que não gosta dessas aragens quentes de Verão?) pelo prédio antigo. Subiu os degraus de madeira (também ela de certa idade), acompanhada pelo ranger das tábuas que já tão bem conhecia, não poupando no entanto, a preguiça dum chinelar arrastado, como se o dia na praia a tivesse obrigado a carregar o sol em ombros até à cidade.
Quando chegou ao 3º andar, suspirou, e deu um último pesado passo, elevando o braço para bater à porta. Do lado de dentro do apartamento, ele gritou, como que por entre mil afazeres: "Já vai!". Ela estranhou - normalmente ele diria "entra..." e bastaria rodar a maçaneta, atirar-se para o sofá e ficar feliz por finalmente descansar sob a brisa que vinha da, estrategicamente localizada, janela, grande e quadrada que, de resto, se enquadrava na perfeição no traço antigo da casa. Quando não se entregava ao sofá, abria a janela, sentava-se no seu parapeito e passava ela a enquadrar-se numa foto em contra-luz extraordinária - mas não para ela, para ele. Nestes fins de tarde juntos, ela queixar-se-ía de como a vida era difícil ou contaria de um modo um bocado atabalhoado os últimos acontecimentos, misturando factos com o seu parecer, deixando-o apenas com um sorriso por ela ali estar, faladora e incerta, como sempre, sem dar importância, necessariamente, a todos os seus devaneios. Era o bastante vê-la ali, saber que estava ao seu lado, em oposição ao restante tempo dos dias em que só podia imaginar onde ela estaria, o que fazia e com quem estaria a partilhar as suas risadas, lamentos e observações. Mas não desta vez: o bastante já não era suficiente, e esta tarde não era como tantas outras - especialmente para ele.
Enquanto esperava do lado de fora, entrelaçava o cabelo por entre os dedos e bufafa de calor. Olhando em volta, aproveitava também para do mais pequeno pormenor (como estar ansiosa por ver a porta abrir-se e lembrar-se da música "Dá-me Luz" - da qual só sabia o título por relacioná-la à de Jorge Palma, "Dá-me Lume") tecer mais um dos seus fios de pensamento, tão disconexos para qualquer outra pessoa - e nem ela sabia a maioria das vezes lembrar-se como é que tudo tinha começado - mas tão típicos da sua mente: Lembrou-se da noite em que viu Jorge Palma sentado ao piano do Casino Estoril e na falta de interesse de tantos que se deslocaram lá, e lá, viravam as costas ao artista. Pensou na palavra "Respeito" e em como um dia, num qualquer país que já nem se lembrava ao certo, lhe "pediram" para vestir o casaco à entrada de uma Igreja. Ora, se para ir à Igreja, há que respeitar os princípios desta, para ir ver um espectáculo, há que prestar atenção!
As observações eram um traço marcante desta rapariga. Nem sempre eram ditas com noção de como soariam depois de expostas. Era comum dizer algo que não lhe parecia muito grave, para se aperceber logo após, pelo silêncio ou expressão facial de quem a acompanhava, que era julgada não ter coração ou o mínimo tacto para conseguir dizer o que dizia. Outra vezes, nem era necessário que abrisse a boca para espantar os outros - quando não sabia o que dizer, comportava-se de formas que ainda tornavam as suas poucas palavras piores do que o discurso mais hostil possível. Escusado será dizer que era uma pessoa... vá, digamos: Especial.
Perguntar-nos-emos, então, por que é que parece que este rapaz está apaixonado por esta rapariga?... Não saberei responder a essa questão. Sobre sentimentos poder-se-à dizer muito, mas nunca o suficiente como senti-los. Pelo passado, poderei estimar que as relações mais estreitas com esta rapariga eram difíceis para quem estava do outro lado. Porém, testemunhos afirmam que quando se estabelece um laço, ele é fortíssimo e, há uma marca que esta menina deixa, bastante pessoal que, estranhamente, é com carinho que se passa a pensar nela. Claro está que, sendo quem descrevo acima, não poderá transformar-se completamente num oposto após a criação de uma relação mais íntima. Sim, continuará a ser fria e desapegada mas demonstrará também um outro lado. E é, talvez, esse electrocardiograma entre a raiva de quando ela é insensível e finge que nada lhe toca, e a ternura que é quando a apanhamos a jeito, que apaixone; assim como a segurança que consegue incutir - desde já, inesperada - que agarre, então, qualquer um a alguém tão improvável... bastando para isso que se dê tempo ao tempo!, e este lhe dê o tempo dela.
Para o leitor mais atento, poderá ainda colocar-se a seguinte dúvida: "Que tanto fazia o rapaz de especial dentro do apartamento nesta tarde?". Infelizmente, também nunca soube. Só sei relatar que de tanto esperar (ou apenas, "um pouco" bastante ampliado pela sua impaciência), ela já se tinha sentado nos degraus ao lado da porta branca do apartamento. De repente, ele abre a porta e logo lhe sorri, com nervos incendiando internamente um "é agora ou nunca!...". Ela levanta a cabeça e enquanto se ergue em gestos pesados do calor, esgotada e desesperada por se atirar ao sofá do outro lado, diz, já no fim da sua pequena gentileza: "Ainda bem que esperei sentada!...". Ouve-se uma porta bater! - resultado da corrente de ar que se gerou, não só no prédio como no íntimo daquele, agora menino, que viu apagar-se a chama e as expectativas que tinha para esta tarde que, por momentos desejou diferente, mas se revelou igual a tantas outras...